O naufrágio do lugre Spindrift ,
São Jorge (1870)
Na madrugada do dia 26 de Dezembro de 1870, António de Matos, morador na Fajã de Cima, ilha de São Jorge, acordou com
umas pancadas na porta da sua casa. Estando a noite escuríssima, invernosa em
chuva e ventania, António deve ter tido algum receio em abrir a porta.
Quando se decidiu a fazê-lo, deparou com dois estrangeiros, em lastimoso
estado que, falando inglês, não eram percebidos. António de Matos achou por bem encaminhá-los para a casa
de João Teixeira Luis, que tendo estado vários anos nos Estados Unidos,
perceberia talvez a língua que falavam. Foi este emigrante que consegui
decifrar o mistério daqueles dois homens aparecidos a meio da noite numa ilha perdida no
meio do Atlântico.
O naufrágio do Spindrift
Os dois homens, um inglês e o outro irlandês, eram náufragos, os dois únicos sobreviventes
da tripulao de nove homens do lugre inglês Spindrift, uma embarcação de casco de ferro
saída de Liverpool com destino às Antilhas.
O lugre, que tinha a bordo um
importante carregamento de tecidos e mercearias, aproximara-se
perigosamente da costa da ilha de São Jorge, no dia de Natal, sem que tripulaçãoo de tal
desse conta. Muita cerra��o, mau tempo e divergências a bordo entre os oficiais,
proveniente da embriaguez dos mesmos, deram então lugar à tragédia.
A cerca de 300 metros a leste da lagoa da
Caldeira de Santo Cristo, o Spindrift e a sua tripulação embriagada e quase que amotinada, tocou na Baixa do Meio, rodando para o
sítio da Eirinha - longe de terra,
por ser de mui pouca profundidade o mar daquela costa - encalhando e
abrindo-se em duas metades em coisa de minutos.
Os dois sobreviventes de que
falamos foram arrojados à costa onde, com essa fleuma que caracteriza os
nossos fieis aliados (ou talvez sob o efeito anestésico do brandy ingerido..) se
deixaram dormir sobre os pedregulhos da costa. Ao acordarem e ignorando onde
se achavam e para onde se dirigiriam, a fim de obter algum socorro de vestuário
e de alimentação, viram por sua fortuna, tremeluzir no alto, ao longe, uma luzerna. Puseram-se a
caminho em direcção ao alto da falésia onde chegaram, através de precipícios, e bateram, como já vimos, à porta de António Matos.
O
saque da carga do lugre
Quando o dia clareou os destroços do navio foram
vistos, debatendo-se nas ondas. Pela manhã estava o litoral cheio de
fardos de chita, de uma estamparia muito arregalada e estravagante, algodões, paninho, cotins,
pano fino, guarda sóis, lenços, carros de linha, loiça, garrafões, conservas,
temperos e muitos outros objectos.
Acorreram à praia primeiro os moradores da
beira mar, depois os que habitavam a parte média da escarpa, e por fim de todos
os pontos da ilha, onde a noticia do sinistro rebentou com velocidade
telegraphica. Entretanto, alguns dos cadáveres dos sete membros da tripulação deram à costa na preia-mar,
sendo sepultados num campo chamado Relv�o, de Manuel Joaquim.
Mas não era só curiosidade que o
que atraía a população ao local do naufrágio do Spindrift. Sem sombra de caridade, de magoa, de
compaixão n’aquelles rostos assombrados pela cobiça, iluminados pelo delirio da
rapina, os jorgenses formaram uma multidão que fervilhava
indistinctamente na arrebentação do mar.
Todo aquele bando de homens,
de mulheres, e creanças, alagados, seminus, em cynica promiscuidade de
sexos e edades, agarrava-se aos fardos de fazenda, que se desmanchavam ao
contacto das pedras, envolvendo-se nas peças de chita que boiavam à tona d’agua, disputando-se
tenazmente um farrapo cortado ao mesmo tempo por muitas facas, e subtrahido aos
que o cortavam por outros que lhes espreitavam a operação, acotovelando-se, empurrando-se n’um tiroteio mutuo de
injurias, gargalhadas, risos e empreca��es, entregues, corpo e alma, a uma
rapina nojenta, obscena, inconcebível.
A cobiça causou até mortes - uma
rapariga da Ribeira da Areia que se aproximou do embrulho de panos e fazendas
foi arrebatada pelas ondas que também envolveram uma irmã dela que pretendeu
acudir-lhe. Houve igualmente mãos mutiladas, pernas e braços golpeados, calças e saias cortadas
por equívoco, lenços bifados da cabeça do dono, enquanto este disputava
ao mar um farrapo, que não valia metade do lenço.
Na ânsia do saque, as peças de pano eram
atadas a cordas que depois eram puxadas pela falésia acima só para serem roubadas pelos retardatários. Ao que parece,
depois da rapina à beira mar, veio a rapina em terra. Os ultimos
concorrentes achando poucos despojos no campo da batalha, cahiram a passo de
carga, sobre as bagagens dos primeiros possuidores, fazendo n’ellas perfeito
alimpamento. Mas, numa justiçaa poética, os que assim empolgavam com pouco trabalho
o que outros haviam subtrahido a custo, eram depois despojados de tudo por
terceiro bando que, occulto nas quebradas e desfiladeiros da encosta, cahia d’improviso
sobre os segundos ratoneiros.
Contra tudo isto se insurgiu uma testemunha
ocular do sucedido. escrevendo no jornal o Fayalense de 4 de Janeiro de 1871,
L. invectivou a já costumeira rapacidade dos seus conterrâneos em ocasiões de naufrágio (o mesmo fenómeno se verificara
aquando do naufrágio do brigue francês Rosalie, que deu à costa da Calheta a 26 de Janeiro
de 1867, tendo a população enterrado nos quintais grande parte do mogno que o
brigue transportava).
E o que há a dizer 133 anos depois? Apenas que para os
jorgenses, presos à miséria das terras escarpadas e afastados dos grandes
circuitos comerciais de finais do século XIX, o naufrágio do Spindrift foi uma
inesperada prenda de Natal - durante largos anos, grande parte da população da ilha vestiu-se à conta daquilo que o
povo passou a denominar o navio das chitas.
Para saber mais:
Jornal
de Comércio, nº 4888, 1870
O Fayalense, 4 de Janeiro de 1871
CUNHA, M.
(1981) � Notas Históricas I: estudos sobre o Concelho da Calheta (S.
Jorge). Recolha, introdução e notas de Artur Teodoro de Matos. Ponta Delgada:
Universidade dos Açores.
Artigo de Paulo Monteiro.
Ver artigo original em:
http://nautarch.tamu.edu/shiplab/01monteiro/SJorge-Spindrift.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário